A Festa no Jardim, de Katherine Mansfield

Foto por Ben Rosett @spiritvisionstudios | Unsplash

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Tradução realizada sob supervisão da Porfa. Dra. Rosalia Angelita Neumann Garcia, a partir do original de Katherine Mansfield, disponível no Project Gutenberg dentro do livro digitalizado The Garden Party, and Other Stories.

O artigo “‘The Garden Party’ e suas diferentes leituras: algumas considerações sobre a tradução literária”, publicado nos Cadernos de Tradução, ligados à Universidade Federal de Santa Catarina e com nota máxima na avaliação da CAPES, faz referência ao processo de tradução deste conto, cujo resultado é reproduzido abaixo na íntegra.

A FESTA NO JARDIM

Katherine Mansfield

No fim das contas, o clima estava ideal. Elas não teriam encontrado um dia mais perfeito para uma festa no jardim mesmo que o tivessem encomendado. Sem vento, quente, o céu sem uma nuvem. O azul encoberto apenas por uma névoa de ouro claro, como às vezes acontece no início do verão. O jardineiro estava de pé desde o amanhecer, cortando e recolhendo a grama até que o gramado e os florões escuros e achatados onde estiveram as margaridas parecessem brilhar. Quanto às rosas, era impossível não pensar que elas compreendiam que aquelas eram as únicas flores que impressionavam os outros nas festas no jardim; as únicas flores que com certeza todos conheciam. Centenas, sim, literalmente centenas, tinham nascido em uma única noite; os arbustos verdes curvavam-se como se tivessem sido visitados por arcanjos.

O café da manhã ainda não havia terminado quando os homens chegaram para montar a tenda.

“Onde a senhora quer a tenda, mãe?”

“Minha filha querida, não adianta me perguntar. Estou determinada a deixar tudo para vocês este ano. Esqueça que sou sua mãe. Trate-me como uma convidada de honra”.

Mas não havia a menor possibilidade de Meg supervisionar os homens. Ela lavara o cabelo mais cedo e agora tomava café usando um turbante verde, com um cacho escuro e molhado carimbado em cada bochecha. Jose, a borboleta, sempre descia vestindo uma anágua de seda e um quimono.

“Você vai ter que ir, Laura; você é a artista”.

E Laura foi, ainda segurando um pedaço do pão com manteiga. Era delicioso ter uma desculpa para comer ao ar livre e, fora isso, ela adorava organizar as coisas; sempre sentia que sabia fazer isso muito melhor do que qualquer um.

Quatro homens em mangas de camisa estavam agrupados no caminho no jardim. Eles carregavam bastões cobertos por rolos de lona e traziam grandes bolsas de ferramentas penduradas nas costas. Pareciam impressionantes. Laura agora desejava não ter trazido o pão com manteiga, mas não tinha onde colocá-lo e não podia jogá-lo fora. Ela corou e tentou parecer severa e até um pouquinho míope ao aproximar-se deles.

“Bom dia” disse, imitando a voz da mãe. Mas aquilo soou tão afetado que ela se sentiu envergonhada e gaguejou como uma menininha. “Ah… é… vocês vieram… estão aqui por causa da tenda?”

“Isso mesmo, moça” disse o homem mais alto, um rapaz esguio e sardento; ele mudou sua bolsa de posição, tirou o chapéu de palha e sorriu para ela. “É isso aí”.

O sorriso dele era tão tranquilo, tão amigável, que Laura se recompôs. Que belos olhos ele tinha, pequenos, mas de um azul tão escuro! Ela olhou para os outros, e eles também sorriram. “Anime-se, a gente não morde”, seus sorrisos pareciam dizer. Como eram agradáveis os operários! E que bela manhã! Ela não devia mencionar a manhã; precisava ser profissional. A tenda.

“Bom, que tal o gramado com os lírios? Fica bom?”

E indicou o gramado com mão que não segurava o pão com manteiga. Eles viraram, olharam fixamente naquela direção. Um sujeito pequeno e gordo pôs para fora o lábio inferior, e o rapaz alto franziu o cenho.

“Não gosto da ideia” disse ele. “Não é conspícuo o suficiente. Quando se tem algo como uma tenda,” ele virou para Laura à sua maneira tranquila “quer que ela esteja num lugar com que você dá de cara assim que chega, se é que me entende”.

A educação que Laura recebera fez com que, por um momento, se perguntasse se era respeitoso da parte de um operário falar com ela sobre “dar de cara” com alguma coisa. Mas ela entendia o que ele queria dizer.

“Um canto da quadra de tênis” ela sugeriu. “Mas a banda vai estar em um dos cantos”.

“Vai ter uma banda, é?” disse outro dos operários. Ele era pálido. Seu aspecto era exausto ao examinar a quadra de tênis com seus olhos escuros. Em que estaria pensando?

“Só uma banda bem pequena” disse Laura, de modo conciliador. Talvez ele não se importasse tanto se a banda fosse pequena. Mas o rapaz alto interrompeu.

“Olhe, moça, lá é o lugar. Na frente daquelas árvores. Lá. Lá fica bom”.

Na frente das karakas[1]. Dessa forma, as árvores ficariam escondidas. E elas eram tão lindas, com suas folhas largas e reluzentes e seus cachos de frutos amarelos. Eram como as árvores que você imaginaria crescendo numa ilha deserta, orgulhosas, solitárias, levantando as folhas e os frutos para o sol numa espécie de esplendor silencioso. Será que elas deveriam mesmo ser escondidas por uma tenda?

Deveriam. Os homens já haviam apoiado os bastões sobre os ombros e se dirigiam até lá. Somente o rapaz alto ficou para trás. Ele se abaixou, apertou um ramo de lavanda, levou o polegar e o indicador ao nariz e aspirou o cheiro. Quando Laura viu esse gesto, esqueceu-se completamente das karakas, surpresa por ele se importar com coisas como aquela – se importar com o cheiro da lavanda. Quantos dos homens que ela conhecia teriam feito tal coisa? Ah, que extraordinariamente agradáveis eram os operários, ela pensou. Por que não podia tê-los como amigos, ao invés dos garotos bobos com quem dançava, que vinham jantar nas noites de domingo? Ela se daria muito melhor com homens como esses.

Era tudo culpa, ela decidiu enquanto o rapaz alto desenhava alguma coisa na parte de trás de um envelope, algo que deveria ser amarrado ou deixado pendurado, daquelas absurdas distinções de classe. Bem, ela não as sentia. Nem um pouquinho, nem um átomo… E agora soavam os toc-toc dos martelos de madeira. Alguém assobiava, alguém bradava “tudo bem por aí, companheiro?”. “Companheiro”! A afabilidade daquela palavra, a… a… só para provar o quanto estava feliz, para mostrar ao rapaz alto o quão confortável ela se sentia e o quanto desprezava aquelas convenções bobas, Laura deu uma grande mordida em seu pão com manteiga enquanto fitava o pequeno desenho. Sentia-se como uma operária.

“Laura, Laura, onde você está? Telefone, Laura!” uma voz berrou de dentro da casa.

“Estou indo!” Ela deslizou sobre o gramado, pelo caminho, escada acima, através da varanda e até o pórtico. No hall, seu pai e Laurie escovavam os chapéus antes de irem para o escritório.

“Ouça, Laura,” disse Laurie muito rapidamente “você podia dar uma olhadinha no meu casaco antes da tarde de hoje. Veja se precisa passar”.

“Vou olhar” disse ela. De repente não conseguiu se conter. Correu até Laurie e deu nele um abraço rápido. “Eu realmente adoro festas, você não?” ofegou Laura.

“Muito” disse a voz de Laurie, amigável e pueril, e ele também abraçou a irmã, empurrando-a de leve. “Corra pro telefone, minha querida”.

O telefone. “Sim, sim; ah, sim. Kitty? Bom dia, querida. Vem almoçar? Venha, querida. É um prazer, claro. Vai ser só um almoço simplesinho – só as cascas dos sanduíches, merengues quebrados e as sobras. Sim, é mesmo uma manhã perfeita, não é? O branco? Sim, eu deveria mesmo. Só um segundo – espere na linha. Minha mãe está chamando”. Laura recostou-se. “O quê, mãe? Não ouvi”.

A voz da Sra. Sheridan flutuou escada abaixo. “Diga a ela para usar aquele chapéu lindo que usou no domingo passado”.

“Minha mãe disse que é para você usar aquele chapéu lindo que usou no domingo passado. Que bom. À uma. Tchau”.

Laura colocou o fone no gancho, jogou os braços sobre a cabeça, respirou fundo, espichou-os e deixou que caíssem. “Hum…” ela suspirou e logo depois se endireitou. Estava parada, escutando. Todas as portas da casa pareciam estar abertas. A casa parecia estar viva com as passadas rápidas e suaves e as vozes incessantes. A porta de baeta verde que levava até a região da cozinha se abriu e se fechou com um baque surdo[2]. E agora ouvia-se um som longo, risonho, absurdo. Era o pesado piano sendo arrastado sobre as rodas emperradas. Mas o ar! Será que o ar era sempre assim, se você parasse para reparar? Ventos fracos estavam brincando de pegar, entrando pelo alto das janelas, saindo pelas portas. Havia duas pequenas manchas de sol, uma no tinteiro, a outra num porta-retratos prateado, brincando também. Manchinhas encantadoras. Especialmente a que estava na tampa do tinteiro. Era cálida. Uma cálida estrelinha de prata. Ela poderia tê-la beijado.

A campainha da porta da frente soou, e ouviu-se o roçar da saia estampada de Sadie nos degraus. Uma voz masculina murmurou; Sadie respondeu indiferente. “Não tenho a menor ideia. Espere. Vou perguntar à Sra. Sheridan”.

“O que foi, Sadie?” Laura entrou no hall.

“É o florista, Srta. Laura”.

E, de fato, era. Lá, bem na entrada, estava uma bandeja larga e rasa cheia de vasos com lírios cor-de-rosa. Nenhum outro tipo. Nada além de lírios – grandes lírios de canna cor-de-rosa, escancarados, radiantes, quase assustadoramente vivos sobre hastes de um carmesim brilhante.

“Oh-oh, Sadie!” disse Laura, e o som foi o de um queixume. Ela se agachou, como se quisesse se aquecer com o brilho dos lírios; sentiu-os em seus dedos, seus lábios, crescendo em seu peito.

“É um engano” disse debilmente. “Ninguém encomendou tantos assim. Sadie, vá procurar minha mãe”.

Mas, naquele momento, a Sra. Sheridan juntou-se a elas.

“Está tudo certo” ela disse calmamente. “Sim, eu encomendei. Não são lindos?” Ela apertou o braço de Laura. “Ontem estava passando na frente da loja e os vi na janela. E de repente pensei que pelo menos uma vez na vida eu teria lírios de canna suficientes. A festa no jardim é uma boa desculpa”.

“Mas achei que a senhora tinha dito que não queria interferir” disse Laura. Sadie tinha sumido. O homem da floricultura ainda estava em sua van no lado de fora. Laura colocou o braço ao redor do pescoço da mãe e muito, muito delicadamente, mordeu sua orelha.

“Minha filha querida, você não gostaria de ter uma mãe lógica, não é? Não faça isso. Aqui está o homem”.

Ele carregava ainda mais lírios, outra bandeja cheia.

“Amontoe tudo na entrada, nos dois lados da varanda, por favor” disse a Sra. Sheridan. “Você não concorda, Laura?”

“Concordo, claro, mãe”.

Na sala de visitas, Meg, Jose e o pequeno Hans, tão bonzinho, finalmente tinham conseguido mover o piano.

“Devíamos encostar esse sofá na parede e levar tudo para fora da sala, menos as cadeiras, não acha?”

“Sim”.

“Hans, leve essas mesas para a sala de fumantes e traga uma feiticeira para tirar essas marcas no carpete e – só um segundo, Hans –” Jose adorava dar ordens aos empregados e eles adoravam obedecê-la. Ela sempre fazia com que se sentissem parte de um drama. “Diga à minha mãe e à Srta. Laura para virem aqui imediatamente”.

“Certo, Srta. Jose”.

Ela se virou para Meg. “Quero ouvir como está o som do piano, para o caso de eu precisar cantar esta tarde. Vamos tentar ‘A vida fatiga’”.

Pom! Ta-ta-ta Ti-ta! O piano irrompeu tão apaixonadamente que a expressão de Jose mudou. Ela apertou uma mão com a outra. Olhou enigmática e pesarosamente para a mãe e Laura quando elas entraram.

“A vida fatiga

Lágrimas – Suspiros

Um amor que muda

A vida fatiga

Lágrimas – Suspiros

Um amor que muda

E então… adeus”

Mas ao dizer “adeus”, mesmo com o piano soando mais desesperado do que nunca, o rosto dela se abriu em um sorriso brilhante e terrivelmente insensível.

“Não está boa a minha voz, mamãe?” ela sorriu, radiante.

“A vida fatiga,

A esperança morre

Um sonho – desperta.”

Mas, dessa vez, Sadie as interrompeu. “O que foi, Sadie?”

“Por favor, madame, a cozinheira disse que as bandeirinhas que vão nos sanduíches estão com a senhora?”.

“As bandeirinhas para os sanduíches, Sadie?” repetiu a Sra. Sheridan com ar sonhador. As filhas sabiam, graças à expressão em seu rosto, que a mãe não estava com elas. “Deixe-me ver”. E falou com firmeza a Sadie: “Diga à cozinheira que estarão com ela em dez minutos”.

Sadie se foi.

“Agora, Laura” disse a mãe depressa, “venha comigo até a sala de fumantes. Tenho os nomes anotados nas costas de um envelope. Você vai ter que escrever para mim. Meg, vá lá em cima agora mesmo e tire essa coisa molhada da cabeça. Jose, vá correndo terminar de se vestir. Ouviram ou vou ter que falar com o pai de vocês quando ele chegar em casa à noite, crianças? E – e, Jose, acalme a cozinheira se for até a cozinha, sim? Estou morrendo de medo dela hoje”.

Por fim, o envelope foi encontrado atrás relógio da sala de jantar, embora a Sra. Sheridan não tivesse ideia de como ele fora parar lá.

“Alguma de vocês deve ter roubado da minha bolsa, porque eu lembro vividamente – cream cheesee lemon curd. Anotou?”

“Sim”.

“Ovo e –” a Sra. Sheridan segurou o envelope longe de si. “Parece dizer ‘acetona’. Não pode ser isso, pode?”

“Azeitona, querida” disse Laura, olhando por cima do ombro dela.

“Sim, é claro, azeitona. Essa combinação parece horrível. Ovo e azeitona”.

Por fim, elas terminaram, e Laura as levou até a cozinha. Lá ela encontrou Jose acalmando a cozinheira, que não parecia nem um pouco assustadora.

“Nunca vi sanduíches tão primorosos” disse a voz entusiasmada de Jose. “Quantos tipos você disse que tem, cozinheira? Quinze?”

“Quinze, Srta. Jose”.

“Bem, devo parabenizá-la”.

A cozinheira recolheu as cascas com a longa faca de pão e sorriu largamente.

“A Godber’s chegou” anunciou Sadie, saindo da despensa. Ela tinha visto o homem passar pela janela.

Aquilo queria dizer que os profiteroles de creme tinham chegado. A Godber’s era famosa por seus profiteroles de creme. Ninguém cogitava fazê-los em casa.

“Traga eles para dentro e ponha na mesa, menina” ordenou a cozinheira.

Sadie os trouxe para dentro e voltou para a porta. Laura e Jose estavam crescidas demais para realmente ligarem para essas coisas, é claro. Mesmo assim, não podiam deixar de concordar que os profiteroles pareciam muito atrativos. Muito. A cozinheira começou a organizá-los, retirando o excesso de açúcar de confeiteiro.

“Eles não nos transportam a todas as nossas festas passadas?” disse Laura.

“Suponho que sim” disse a prática Jose, que não gostava de ser levada ao passado. “Parecem incrivelmente leves e fofos, devo admitir”.

“Comam um cada uma, minhas queridas” disse a cozinheira, com sua voz tranquila. “Mamãe não vai ficar sabendo”.

Ah, impossível. Profiteroles chiques logo depois do café da manhã. Só a ideia já faria alguém estremecer. Mesmo assim, dois minutos depois, Jose e Laura lambiam os dedos com aquele ar absorto que só o creme batido faz surgir.

“Vamos até o jardim pelo caminho dos fundos” sugeriu Laura. “Quero ver como os homens estão se virando com a tenda. Eles são homens tão agradáveis”.

Mas a porta dos fundos estava bloqueada pela cozinheira, Sadie, o homem da Godber’s e Hans.

Alguma coisa tinha acontecido.

“Tsk tsk tsk” cacarejou a cozinheira, como uma galinha agitada. Sadie tinha a mão sobre a bochecha, como se estivesse com dor de dente. O rosto de Hans estava contorcido pelo esforço para compreender. Somente o homem da Godber’s parecia estar se divertindo; era a história dele.

“Qual é o problema? O que aconteceu?”

“Aconteceu um acidente horrível” disse a cozinheira. “Um homem morto”.

“Um homem morto! Onde? Como? Quando?”

Mas o homem da Godber’s não deixaria que a história fosse roubada dele bem debaixo do seu nariz.

“Sabe aqueles chalezinhos logo ali embaixo, moça?” Se ela sabia? É claro que sabia. “Bom, tem um rapaz que mora lá, o sobrenome é Scott, um carreteiro. O cavalo dele se assustou com um locomóvel na esquina da Hawke Street hoje de manhã, e ele foi jogado, bateu a cabeça. Morto”.

“Morto!” Laura encarou o homem da Godber’s.

“Já estava morto quando recolheram ele” disse o homem da Godber’s com satisfação. “Estavam levando o corpo para casa quando cheguei aqui”. E ele disse à cozinheira: “Deixou uma esposa e cinco filhinhos”.

“Jose, venha aqui”. Laura agarrou a manga da irmã e a arrastou pela cozinha até o outro lado da porta de baeta verde. Lá, parou e se apoiou contra a porta. “Jose!” ela disse, horrorizada, “como é que nós vamos parar tudo isso?”

“Parar tudo, Laura!” Jose gritou, perplexa. “O que você quer dizer?”

“Parar a festa, claro”. Por que Jose fingia?

Mas Jose estava ainda mais atônita. “Parar a festa? Laura, querida, não seja absurda. É óbvio que não podemos fazer nada disso. Ninguém espera isso de nós. Não seja tão extravagante”.

“Mas não podemos dar uma festa no jardim com um homem morto logo depois do portão”.

Aquilo era mesmo extravagante, pois os chalezinhos ficavam numa viela só para eles na base da colina íngreme que levava até a casa. Uma estrada larga corria entre eles. Ficavam perto demais, é verdade. Eram completamente desagradáveis de se ver, e não tinham direito algum de estar naquela vizinhança. Eram residências inferiores pintadas num marrom-chocolate. Nos canteiros dos jardins, não havia nada além de talos de repolho, galinhas doentes e latas de tomate. Até a fumaça que saía das chaminés parecia miserável. Pequenos trapos e frangalhos de fumaça, tão diferentes das enormes colunas prateadas que se desenrolavam das chaminés dos Sheridan. Lavadeiras moravam naquela viela, e limpadores de chaminés, um sapateiro e um homem cuja fachada de casa era completamente tomada por minúsculas gaiolas. Crianças abundavam. Quando os Sheridan eram pequenos, eram proibidos de pisar lá, por causa da linguagem revoltante e do que poderiam pegar. Mas, desde que haviam crescido, Laura e Laurie às vezes passavam por lá durante suas rondas. Era nojento e sórdido. Voltavam arrepiados. Ainda assim, era preciso ir a todos os lugares, ver todas as coisas. Portanto, eles iam.

“E pense em como a banda soaria para aquela pobre mulher” disse Laura.

“Ah, Laura” Jose começou a ficar seriamente incomodada. “Se você for impedir uma banda de tocar cada vez que alguém sofre um acidente, sua vida vai ser bem cansativa. Sinto tanto quanto você pelo acidente. Sinto-me tão solidária quanto você”. Os olhos dela ficaram insensíveis. Olhou para a irmã do mesmo jeito que a olhava quando eram crianças e brigavam uma com a outra. “Ser sentimental não vai trazer um operário bêbado de volta à vida” ela disse em voz baixa.

“Bêbado! Quem disse que ele estava bêbado?” Laura voltou-se contra Jose furiosamente. Ela disse, do mesmo jeito que costumavam dizer naquelas ocasiões: “Vou agora mesmo contar para a mãe”.

“Conte, querida” disse Laura de forma suave.

“Mãe, posso entrar no seu quarto?” Laura girou a grande maçaneta de vidro.

“Claro, filha. Ora, qual é o problema? Por que essa cara?” A Sra. Sheridan, sentada na penteadeira, virou-se para ela. Estava experimentando um chapéu novo.

“Mãe, um homem foi morto” começou Laura.

“No nosso jardim?” interrompeu a mãe.

“Não, não!”.

“Ah, que susto você me deu!” A Sra. Sheridan suspirou com alívio e tirou o chapéu, segurando-o sobre os joelhos.

“Mas, mãe, escute” disse Laura. Ofegante, meio engasgada, ela contou a terrível história. “É claro que não podemos dar a festa, não é?” implorou. “A banda, e todos chegando. Eles nos ouviriam, mãe; são quase vizinhos!”

Para o espanto de Laura, a mãe agiu exatamente como Jose; era ainda mais difícil de suportar, pois ela parecia achar graça. Recusou-se a levar Laura a sério.

“Mas, minha querida, use seu senso comum. Só ficamos sabendo a respeito disso por acidente. Se alguém tivesse morrido normalmente por lá – e não entendo como se mantêm vivos naqueles buraquinhos estreitos – nós ainda daríamos nossa festa, não é?”

Laura teve de responder que “sim”, mas sentia que estava tudo errado. Ela sentou no sofá da mãe e beliscou o babado da almofada.

“Mãe, isso não seria completamente insensível de nossa parte?” perguntou.

“Querida!” A Sra. Sheridan levantou e foi até ela, carregando o chapéu. Antes que Laura pudesse impedir a mãe, ela o pôs na cabeça da filha. “Minha filha!” disse a mãe, “o chapéu é seu. Foi feito para você. É jovem demais para mim. Nunca vi você tão parecida com uma pintura. Olhe para você!” E ergueu o espelho de mão.

“Mas, mãe” Laura começou de novo. Ela não conseguia olhar; virou o rosto.

Dessa vez, a Sra. Sheridan perdeu a paciência, exatamente como Jose.

“Você está sendo muito absurda, Laura” disse com frieza. “Pessoas como aquelas não esperam sacrifícios de nossa parte. E não mostra muita sensibilidade estragar a alegria de todo mundo como está fazendo agora”.

“Eu não entendo” disse Laura, e saiu rapidamente de lá, em direção ao seu próprio quarto. Lá, quase por acaso, a primeira coisa que viu foi uma menina encantadora no espelho, vestindo seu chapéu preto enfeitado com margaridas douradas e com uma longa fita de veludo preto. Ela nunca imaginara que poderia ter aquela aparência. Será que a mãe está certa?, pensou. E agora esperava que estivesse. Será que estou sendo extravagante? Talvez fosse mesmo. Por um curto momento, teve outro vislumbre daquela pobre mulher com as pequenas crianças e do corpo sendo carregado para dentro da casa. Mas tudo parecia desfocado, irreal, como uma foto no jornal. Vou me lembrar disso de novo depois que a festa acabar, ela decidiu. E, de algum jeito, aquele parecia ser o melhor plano…

O almoço estava terminado à uma e meia. Às duas e meia, estavam todos prontos para ir à luta. A banda, vestindo casacos verdes, havia chegado e fora instalada num dos cantos da quadra de tênis.

“Minha querida!” trilou Kitty Maitland, “eles não se parecem demais com sapos? Você devia tê-los organizado em volta do lago, com o maestro no meio, em cima de uma folha”.

Laurie chegou e as cumprimentou, passando para ir se vestir. Ao vê-lo, Laura lembrou-se do acidente de novo. Queria contar a ele. Se Laurie concordasse com os outros, com certeza tudo ficaria bem. Ela o seguiu até o hall.

“Laurie!”

“Olá!” Ele já estava na metade das escadas, mas quando virou e viu Laura, subitamente soprou o ar das bochechas e arregalou os olhos: “Uau, Laura! Você está realmente deslumbrante” disse Laurie. “Que chapéu esplêndido!”

Laura falou sem muita convicção: “É mesmo?”, e sorriu para Laurie, e no fim não contou a ele.

Logo depois, as pessoas começaram a chegar aos borbotões. A banda começou; os garçons contratados correram da casa para a tenda. Para onde quer que se olhasse, havia casais passeando, inclinando-se em direção às flores, cumprimentando-se, caminhando sobre o gramado. Eram como pássaros brilhantes que haviam pousado no jardim dos Sheridan nessa única tarde, a caminho do – de onde? Que felicidade, estar somente entre pessoas, todas elas felizes, mãos se tocando, rostos se tocando, sorrisos dados com os olhos.

“Laura, querida, como você está bem!”

“Que chapéu lindo, menina!”

“Laura, você parece uma espanhola. Nunca vi você tão bonita”.

E Laura, radiante, respondia suavemente: “Já tomou chá? Não gostaria de um sorvete? O de maracujá está realmente muito especial”. Ela correu para o pai e implorou: “Papai, querido, a banda não pode beber alguma coisa?”

E a tarde perfeita lentamente amadureceu, e desvaneceu, e suas pétalas se fecharam.

“Nunca houve uma festa ao ar livre mais agradável…” “Um grande sucesso…” “O maior…”

Laura ajudou a mãe com as despedidas. Ficaram lado a lado na entrada até que tudo tivesse acabado.

“Acabou, acabou, graças aos céus” disse a Sra. Sheridan. “Reúna os outros, Laura. Vamos tomar um café fresco. Estou exausta. Sim, foi um grande sucesso. Mas, ah, essas festas, essas festas! Por que vocês crianças insistem em dar festas!” E todos sentaram na tenda deserta.

“Coma um sanduíche, paizinho querido. Fui eu que escrevi na bandeirinha”.

“Obrigado”. O Sr. Sheridan deu uma mordida e o sanduíche desapareceu. Ele pegou outro. “Suponho que não tenham ouvido falar do acidente brutal que aconteceu hoje?” ele disse.

“Meu querido” disse a Sra. Sheridan, levantando a mão “ouvimos, sim. Quase arruinou a festa. Laura insistiu que devíamos adiar”.

“Ah, mãe”. Laura não queria que caçoassem dela por causa daquilo.

“De qualquer jeito, foi um incidente terrível” disse o Sr. Sheridan. “E o sujeito era casado. Morava aqui embaixo, na viela, e deixou uma esposa e meia dúzia de filhinhos, estão dizendo”.

Um silêncio desconfortável se instalou. A Sra. Sheridan mexia, inquieta, na sua xícara. Era realmente muito indelicado da parte do pai…

Subitamente, levantou o olhar. Lá, sobre a mesa, estavam todos aqueles sanduíches, bolos, profiteroles, todos sem serem consumidos, todos a serem desperdiçados. Ela teve uma de suas brilhantes ideias.

“Já sei” disse. “Vamos montar uma cesta. Enviar um pouco dessa comida em perfeito estado à pobre criatura. Pelo menos será um agrado para as crianças. Não acham? E ela certamente receberá os vizinhos e tudo mais. Que bom momento para termos tudo pronto. Laura!” Ela levantou num pulo. “Traga a cesta grande que está no armário da escada”.

“Mas, mãe, a senhora acha que é mesmo uma boa ideia?” disse Laura.

Novamente, que curioso, ela parecia ser diferente de todos eles. Levar sobras da festa. Será que a pobre mulher realmente gostaria daquilo?

“Claro! O que está acontecendo com você hoje? Uma ou duas horas atrás estava insistindo que precisávamos ser solidários, e agora –”

Ah, bem. Laura correu até a cesta. Ela foi preenchida, lotada, pela mãe.

“Leve você mesma, querida” disse ela. “Corra assim como está. Não, espere, leve os copos-de-leite também. As pessoas daquela classe se impressionam com copos-de-leite.”

“Os caules vão arruinar seu vestido de renda” disse a prática Jose.

Iam mesmo. Bem a tempo. “Só a cesta, então. E, Laura!” – a mãe a seguiu para fora da tenda – “não faça, de jeito nenhum –”

“O que, mãe?”

Não, era melhor não colocar aquelas ideias na cabeça da criança! “Nada! Vá!”

Estava começando a escurecer quando Laura fechou os portões do jardim. Um grande cão passou como uma sombra por ela. A estrada cintilava, branca, e, lá embaixo, no vale, os chalezinhos estavam numa penumbra profunda. Como tudo parecia quieto depois daquela tarde. Aqui estava, descendo a colina em direção a um lugar onde um homem jazia morto, e ela não conseguia processar o fato. Por que não? Ela parou por um minuto. E pareceu-lhe que beijos, vozes, colheres tilintando, risadas, o cheiro da grama amassada estavam, de alguma forma, dentro dela. Não tinha espaço para mais nada. Que estranho! Ela olhou para o céu pálido e tudo que pensou foi: “Sim, a festa foi um grande sucesso”.

Agora, a larga estrada estava atravessada. A viela surgiu, enfumaçada e escura. Mulheres vestindo xales e as boinas de tweed dos homens passavam apressadas. Homens pairavam sobre as paliçadas; as crianças brincavam nos vãos das portas. Um zumbido baixo vinha dos xalezinhos pobres. Em alguns deles, havia uma luz bruxuleante, e uma sombra moveu-se como um caranguejo atrás da janela. Laura baixou a cabeça e seguiu apressada. Agora desejava ter vestido um casaco. Como seu vestido brilhava! E o grande chapéu, com aquela fita de veludo – se pelo menos fosse outro chapéu! Será que as pessoas estavam olhando para ela? Deviam estar. Era um erro ter vindo; sempre soubera que seria um erro. Será que ela deveria voltar, mesmo agora?

Não, tarde demais. Essa era a casa. Tinha de ser. Uma aglomeração escura de pessoas estava do lado de fora. Ao lado do portão, uma mulher muito velha carregando uma muleta estava sentada em uma cadeira, observando. Seus pés estavam sobre um jornal. As vozes paravam à medida que Laura se aproximava. O grupo abriu espaço. Era como se esperassem por ela, como se soubessem que estava vindo.

Laura estava terrivelmente nervosa. Jogando a fita de veludo por sobre o ombro, disse a uma mulher que estava parada ali: “Essa é a casa da Sra. Scott?”, e a mulher, sorrindo de modo estranho, disse “é, sim, minha menina”.

Como queria estar longe daquilo! Ela chegou a realmente dizer “ajude-me, Deus” quando andava pelo pequeno caminho. Bateu na porta. Queria estar longe daqueles olhos que a encaravam, ou então estar coberta por alguma coisa, até mesmo o xale de uma daquelas mulheres. Vou só deixar a cesta e ir embora, decidiu. Não vou nem mesmo esperar que seja esvaziada.

Então a porta se abriu. Uma mulher pequena vestindo preto apareceu na escuridão.

Laura disse: “Você é a Sra. Scott?” Mas, para seu horror, a mulher respondeu “entra, por favor, moça”, e ela estava presa no corredor.

“Não” disse Laura. “Não quero entrar. Só quero deixar essa cesta. Minha mãe mandou –”

A mulherzinha no corredor escuro pareceu não tê-la escutado. “Por aqui, por favor, moça” disse numa voz servil, e a Laura seguiu.

Ela se viu em uma cozinha miserável, pequena e baixa, iluminada por uma lamparina fumacenta. Havia uma mulher sentada diante do fogo.

“Em” disse a criaturinha que a deixara entrar. “Em! É uma moça”. Ela virou para Laura e disse, significativamente: “Sou irmã dela, moça. Você desculpa ela, né?”

“É claro!” disse Laura. “Por favor, não a incomode. Eu… eu só quero deixar –”

Mas, naquele momento, a mulher diante do fogo virou para elas. Seu rosto, inchado, vermelho, com olhos e lábios também inchados, tinha uma aparência horrível. Parecia não conseguir entender por que Laura estava lá. O que aquilo queria dizer? Por que aquela estranha estava parada na cozinha com uma cesta? De que se tratava tudo aquilo? E o pobre rosto se enrugou de novo.

“Tudo bem, querida” disse a outra. “Eu digo brigada pra moça”.

E, de novo, ela começou: “Sei que você desculpa ela, moça”. Seu rosto, inchado também, tentou dar um sorriso servil.

Laura só queria sair, escapar. Estava de volta ao corredor. A porta se abriu. Ela caminhou direto para o quarto, onde jazia o homem morto.

“Você quer dar uma olhada nele, né?” disse a irmã de Em, e passou por Laura, indo em direção à cama. “Não fica com medo, minha menina” – e agora sua voz era afetuosa e furtiva, e afetuosamente ela puxou o lençol – “parece uma foto. Não tem nada pra mostrar. Vem, minha querida”.

Laura foi.

Lá jazia um homem jovem, dormindo profundamente – dormindo tão tranquilamente, tão profundamente que estava muito, muito longe das duas. Tão remoto, tão sereno. Estava sonhando. Nunca mais o acordem. Sua cabeça estava afundada no travesseiro, seus olhos estavam fechados; eram cegos sob as pálpebras cerradas. Estava entregue a seu sonho. Que importância tinham festas no jardim e cestas e vestidos de renda para ele? Estava longe de todas aquelas coisas. Era maravilhoso, lindo. Enquanto eles riam e enquanto a banda tocava, essa maravilha tinha vindo para a viela. Feliz… feliz… Está tudo bem, dizia o rosto que dormia. É exatamente como devia ser. Estou contente.

Ainda assim, era preciso chorar, e ela não podia sair da sala sem dizer alguma coisa a ele. Laura emitiu um soluço alto e infantil.

“Perdoe-me pelo meu chapéu” ela disse.

E, dessa vez, não esperou pela irmã de Em. Ela conseguiu encontrar a saída, desceu pelo caminho, passou por todas aquelas pessoas escuras. Na esquina da viela, encontrou Laurie.

Ele saiu das sombras. “É você, Laura?”

“Sim”.

“Nossa mãe estava ficando ansiosa. Foi tudo bem?”

“Sim, tudo. Ah, Laurie!” ela pegou seu braço, encostou-se nele.

“Você não está chorando, está?” perguntou o irmão.

Laura sacudiu a cabeça. Ela estava.

Laurie pôs o braço em seus ombros. “Não chore” disse com sua voz cálida, afetuosa. “Foi muito ruim?”

“Não” soluçou Laura. “Foi simplesmente maravilhoso. Mas Laurie –”. Ela parou e olhou para o irmão. “A vida não é” ela gaguejou. “A vida não é –” Mas não conseguia explicar o que a vida era. Não importava. Ele entendeu. “Não é, querida?” disse Laurie.


[1] Árvore endêmica da Nova Zelândia, país de origem da autora.

[2] “Green baize door” era uma porta feita com baeta verde, tecido felpudo de lã usado também nas mesas de bilhar. Essa porta separava as duas partes das casas: a que era habitada pela família e a que era destinada aos empregados. O tecido bloqueava os sons e também absorvia parte dos cheiros que vinham da cozinha.